No cenário médico, a relação entre médico e paciente é pautada por uma série de normas éticas e legais que visam proteger ambos os lados, especialmente o paciente, que se encontra em uma posição de vulnerabilidade. Um aspecto crucial dessa relação é o consentimento informado, que deve ser obtido antes de qualquer procedimento médico. Este documento é essencial para garantir que o paciente compreenda completamente os riscos, benefícios e alternativas associadas ao procedimento proposto. No entanto, um problema significativo surge com a utilização do “consentimento genérico”, ou “blanket consent”, que pode comprometer a qualidade do consentimento e, por extensão, o direito do paciente à autodeterminação.
O que é Consentimento Genérico?
O termo “blanket consent” refere-se a um tipo de consentimento no qual o paciente assina um documento que não especifica detalhadamente os procedimentos, riscos e consequências. Esse tipo de consentimento é considerado genérico porque não oferece ao paciente informações individualizadas sobre o tratamento que receberá. Legal e eticamente, isso é problemático porque o paciente pode não estar plenamente ciente do que está consentindo.
A Importância da Especificidade no Consentimento
A lei e as boas práticas médicas exigem que o consentimento seja específico e detalhado. O Código de Ética Médica e o Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, enfatizam a necessidade de informações claras e precisas sobre os tratamentos oferecidos. O consentimento deve incluir uma descrição dos procedimentos a serem realizados, potenciais riscos e efeitos colaterais, bem como alternativas disponíveis. Esta prática não apenas empodera o paciente para tomar decisões informadas, mas também fortalece a transparência e a confiança na relação médico-paciente.
Problemas Jurídicos e Éticos do Consentimento Genérico
A utilização de consentimento genérico pode levar a diversas complicações legais e éticas:
- Violação do Direito à Autodeterminação: O paciente tem o direito fundamental de tomar decisões sobre seu próprio corpo e tratamento médico. Um consentimento inadequado compromete esse direito.
- Responsabilidade Civil: Falhas no dever de informação podem resultar em responsabilidade civil para o médico, caso o paciente sofra danos que poderiam ter sido evitados com informações adequadas.
- Desafios Legais: Na jurisprudência brasileira, casos de consentimento inadequado frequentemente resultam em decisões favoráveis ao paciente, onde o ônus da prova recai sobre o médico ou a instituição médica para demonstrar que todas as informações necessárias foram devidamente fornecidas.
A Boa Prática do Consentimento Informado
Para que o consentimento seja considerado válido e efetivo, ele deve seguir algumas diretrizes:
- Clareza e Precisão nas Informações: Todas as informações devem ser comunicadas de forma clara e sem uso de jargões técnicos que possam confundir o paciente.
- Diálogo Aberto: O médico deve garantir que o paciente tenha oportunidade de fazer perguntas e discutir abertamente todas as suas preocupações.
- Documentação Adequada: Embora a lei não exija explicitamente que o consentimento seja escrito, a prática de documentá-lo por escrito é aconselhável para proporcionar maior segurança jurídica para ambas as partes.
Jurisprudência
As decisões judiciais têm consistentemente enfatizado a necessidade de um consentimento informado detalhado e específico na relação médico-paciente, rejeitando a prática de consentimento genérico, também conhecido como “blanket consent”. Estas jurisprudências confirmam e reforçam o direito do paciente à autodeterminação e a obrigação legal do médico de fornecer informações claras e completas sobre os procedimentos médicos. Vejamos, um exemplo:
RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO POR INADIMPLEMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO. NECESSIDADE DE ESPECIALIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO E DE CONSENTIMENTO ESPECÍFICO. OFENSA AO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO. VALORIZAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO. DANO EXTRAPATRIMONIAL CONFIGURADO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. BOA-FÉ OBJETIVA. ÔNUS DA PROVA DO MÉDICO. 1. Não há violação ao artigo 535, II, do CPC, quando, embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão da recorrente.
2. É uma prestação de serviços especial a relação existente entre médico e paciente, cujo objeto engloba deveres anexos, de suma relevância, para além da intervenção técnica dirigida ao tratamento da enfermidade, entre os quais está o dever de informação.
3. O dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante legal.
4. O princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais, é fonte do dever de informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do paciente e preconiza a valorização do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando a sua capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações.
5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado. 6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento, que, ao final, lhe causou danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente.
7. O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital, orientado pelo princípio da colaboração processual, em que cada parte deve contribuir com os elementos probatórios que mais facilmente lhe possam ser exigidos.
8. A responsabilidade subjetiva do médico (CDC, art. 14, §4º) não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, se presentes os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às orientações técnicas aplicáveis. Precedentes.
9. Inexistente legislação específica para regulamentar o dever de informação, é o Código de Defesa do Consumidor o diploma que desempenha essa função, tornando bastante rigorosos os deveres de informar com clareza, lealdade e exatidão (art. 6º, III, art. 8º, art. 9º).
10. Recurso especial provido, para reconhecer o dano extrapatrimonial causado pelo inadimplemento do dever de informação. (REsp n. 1.540.580/DF, Quarta Turma, Relator o Ministro Lázaro Guimarães – Desembargador convocado do TRF 5ª Região – Relator para acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 4/9/2018)
Conclusão
O consentimento informado é fundamental na prática médica ética e legalmente responsável. Ele não apenas protege o paciente de tratamentos indesejados e potencialmente prejudiciais, mas também resguarda o profissional médico de possíveis litígios. Portanto, é vital que o setor médico abandone práticas de consentimento genérico em favor de uma abordagem mais personalizada e detalhada, assegurando que o direito do paciente à autodeterminação seja plenamente respeitado e protegido.